30/06/2010
ainda bem que escrevi logo de manhã
José Mourinho, novo treinador do Real Madrid, assumiu nesta quarta-feira a defesa de Cristiano Ronaldo, afirmando que não se pode tolerar que se atribua a um jogador as responsabilidades pelos resultados de toda uma equipa.
"O Cristiano pode ficar tranquilo e desfrutar as férias. Não permitirei na próxima temporada que se faça pesar sobre ele a responsabilidade de toda uma equipa", disse Mourinho à agência Lusa. Enquanto jogador da minha equipa permito-me fazer um comentário que não fiz desde o começo do Mundial: nas minhas equipas, quando ganhamos, ganhamos todos, quando perdemos, a responsabilidade é só minha", acrescentou.
"Os grandes jogadores marcam a diferença porque são melhores, mas as equipas são um conjunto", prosseguiu.
Sinto-me um autêntico special none, porque estas declarações que li agora vão ao encontro do que penso e escrevi de manhã. Ainda hoje me disseram que iriamos ver como seriam as relações do Ronaldo com o Mourinho. Para já começam bem, mas esta é a diferença entre treinadores que dão camisolas largas para os jogadores jogarem à vontade e os que lhes espetam com camisas de forças e depois ainda dizem que se forem apertadas de mais que fiquem em casa.
"Enquanto estiver à frente da selecção, se o tamanho da camisola for pequeno demais para algum corpo, então não precisam de estar aqui", considerou o técnico, numa conferência de imprensa que serviu de rescaldo à campanha portuguesa na África do Sul.
Agora vou ali à rua de cima dizer que sou o special none e oferecer-me para treinar os Os Pastilhas, o clube onde ainda joguei com o Figo.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Uni%C3%A3o_Futebol_Clube_%22Os_Pastilhas%22
respeitinho
Este jornalismo, descrito em baixo, no desporto em geral e no futebol em particular, ganha, como se fosse possível, uma dimensão de avalanche. Que melhor exemplo do que este campeonato do mundo, em que numa fase inicial, a fase do cume, se deu a ideia que seriamos campeões, porque tínhamos o melhor jogador do mundo, porque somos o Brasil da Europa, porque os nossos jogadores são os mais bonitos e têm as unhas arranjadas e tudo, esquecendo-se que fomos apurados para o mundial com uma sorte incrível e que, ao contrário de Felipe Scolari, Carlos Queiroz nunca conseguiu fazer uma verdadeira equipa, que fosse segura e eficaz.
Depois vieram as más exibições nos jogos de preparação e a neve começou a derreter, de repente caiu o primeiro bloco, a estória do Nani começou a ter contornos de romance policial com espionagem à mistura, afinal o homem até teve de ser operado, logo a seguir, a péssima exibição com a Costa do Marfim faz cair mais outro bloco de neve, para alguns ainda existiu a desculpa do primeiro jogo e da força da selecção Marfinense, nunca esteve em causa as capacidades dessa selecção mas sim as incapacidades da nossa, vieram os sete a zero à Coreia e, qual João Garcia, já estávamos no pico dos Himalaias outra vez, sem se perceber que essa foi uma vitória sem substância, em que na primeira parte o resultado até podia estar em 1x1, e que o que aconteceu na segunda foi mais fruto do acaso e da desorientação dos outros do que mérito nosso. Com o Brasil foi mais do mesmo, uma selecção apática com a desgraçada da lebre (Ronaldo) no meio dos lobos, mas como foi um jogo com os nossos irmãos brasileiro em que até já estavam as duas selecções apuradas e não perdemos, é claro que podiamos ser campeões do mundo.
Até que chega a Espanha, uma verdadeira equipa que até na derrota, fruto dos acasos do futebol, com a Suíça, mostrou um futebol consistente e até apaixonante, naturalmente perdemos. A avalanche ganhou uma velocidade tal, que as normais declarações de Ronaldo fizeram espetar o nacionalismo bacoco, mais as bandeiras cheias de buracos, contra a parede, ainda por cima querem levar o rapaz atrás, como se já não lhe bastasse, fruto da estratégia medrosa de Carlos Queiroz, andar a jogar sozinho contra 4 defesas de metro e oitenta para cima todo o campeonato. Se eu estivesse no lugar dele ainda dizia pior.
jornalismo
A falta de jornalistas séniores, por exemplo. A televisão portuguesa, no seu conjunto (mais aplicadamente na RTP, o que é estranho — e muito menos na SIC), abdicou da presença de jornalistas séniores. Na CNN, Sky, CBS, etc., entregam-se os momentos «mais solenes» ou apenas «mais importantes» a jornalistas seniores. Pessoas que já leram, que não embarcam na primeira histeria, que relembram uma história relacionada (coisa só possível com memória, cultura e, até, experiência), que são capazes de traçar a biografia de um entrevistado em quinze segundos sem destruir a oportunidade (por exemplo: no funeral de Saramago, reduzir Guilherme Oliveira Martins a presidente do Tribunal de Contas), que não reduzem o material de apoio a dois prints mais recentes da internet (já leram, pois), que não caem na primeira treta que alguém deixa cair perto do microfone, que têm a noção da maneira como se deve fazer uma pergunta sem ofender o senso-comum (a jornalista aproxima-se de um táxi à hora do jogo Portugal-Brasil e quer saber por que razão está ele ali a ouvir o relato pela rádio, e não diante da televisão: «Porque está aqui e não foi ver o jogo? Está a trabalhar, é?»).
Aqui: http://origemdasespecies.blogs.sapo.pt/1198273.html
O fascínio que tinha pelo jornalismo acabou quando, em Julho de 1993, um jornalista da então recente SIC, perguntou a um dos pais de uma criança falecida nas piscinas do aquaparque o que sentia naquele momento. O corpo da criança tinha acabado de ser encontrado.
Depois disto só podia ser a descer e a descida tem sido vertiginosa.
puxando a brasa ainda mais
Gostava ainda de salientar que a logística para o trabalho da Mafalda foi bastante complicado, porque apesar da mãe viver na zona, o horário de trabalho não lhe permitiu ajudar a filha, a não ser facilitando um ou outro contacto. Depois ainda teve o azar de perder o disco onde tinha todo o trabalho, tendo sido preciso recorrer a um especialista de informática para recuperar as fotos no computador da mãe e voltar a enviar para Portugal. Como se não bastasse, há três semanas, enquanto preparava o texto final, teve uma infecção no umbigo que a obrigou a ser submetida a uma cirurgia e ficar 3 dias no Hospital, mais uns quantos em casa cheia de dores.
Mesmo assim, o tal plano B nunca lhe passou pela cabeça. Deixo aqui apenas três fotos do trabalho, quando puder deixo o trabalho todo.
Uma mãe
Alunos no intervalo
Uma sala de aulas
Se alguém me explicar, de forma que eu entenda, onde é que a cor faz falta a estas fotos eu agradeço.
29/06/2010
cabeçadas
Ontem, fui com o meu pai e o meu filho ver a apresentação do trabalho final do curso profissional de fotografia da minha filha, equivalente ao 12.º ano.
Num auditório com boas condições, aluno após aluno os trabalhos eram apresentados, o júri era constituído por uma repórter fotográfica do jornal Sol, uma representante do sindicato dos jornalistas para a parte escrita, o professor acompanhante do trabalho, a directora de turma, a coordenadora do curso e o director da escola. Até aqui tudo bem, apesar de me parecer exagerado a quantidade de pessoas para analisar trabalhos que, na maior parte dos casos, demoravam 5 minutos a serem apresentados. O que me deixou relativamente espantando e ao meu pai verdadeiramente estupefacto (outra geração, outro profissionalismo, outros hábitos) foi a pseudo-avaliação proferida por aquelas eminências, com excepção para a coordenadora e a representante do sindicato. Os primeiros quatro trabalhos, além de fotograficamente pobres, os respectivos alunos falavam como se estivessem numa amena cavaqueira com o colega do lado, ou seja, eram tipos para aqui e tipos para ali com fartura, depois passavam uma dúzia de fotografias num silêncio confrangedor. O júri elogiava ora o tema, ora uma fotografia ou outra mais bem conseguida, ora a personalidade do aluno que tinha tido o bom-senso de abandonar o plano A e seguido um plano B mais simples e etc.
O meu pai completamente banzado encolhia os ombros na minha direcção.
O panorama depois melhorou um pouco, mas as palavras do júri eram, basicamente, as mesmas. Quando chegou a vez da Mafalda, apresentou um trabalho sobre o povo Macua, tribo de Moçambique, em que além da qualidade das fotografias, juntou um discurso linear sobre cada uma das fotos, onde os costumes eram explicados sem, tão pouco, o recurso a uma cábula que tinha levado, o que para quem tinha estado semanas com aquele povo e sabia bem do que estava a falar não terá sido difícil, chegando ao ponto de comover uma parte da sala e até um elemento do júri, acabando a apresentação, que durou cerca de 15/20 minutos, com um ditado tradicional Macua, "Viver só é apodrecer."
A primeira intervenção foi da menina do Sol que perguntou o porquê da opção pelo preto e branco. A Mafalda sorriu dizendo que já sabia que essa iria ser a primeira pergunta e responde, calmamente, que além de um gosto pessoal por trabalhar a preto e branco, entende que a cor, por vezes, pode desviar a atenção dos pormenores a que quer dar importância, além que, neste trabalho, simbolizava também a simplicidade da vida daquelas pessoas. Resposta daquela pessoa que parece que é fotografa no jornal Sol, "Pois, mas para mim África é cor e, além disso, 28 fotografias é demasiado para uma foto-reportagem." Ok, ficámos a saber que para aquela sra./menina, África é cor e que não interessa a qualidade das fotografias nem da história que contam, o que interessa é que deviam ter cor e ser menos porque concerteza deve ter mais que fazer que aturar 28 fotografias de uma miúda que não conhece de lado nenhum. Porreiro pá, já agora segue o rumo dos jornalistas do Público e vai fotografar o que vai acontecer, talvez acontecer ou mesmo não acontecer aos futebolistas norte-coreanos. E para não ser maçador com tanta banalidade, passo ao director da escola que foi o último a falar, disse que a Mafalda não podia defender as opções num trabalho só porque gosta, ou seja, só apanhou a primeira frase que a miúda disse na resposta da opção pelo preto e branco o que, tendo em conta a cara de frete que tinha, me parece perfeitamente normal.
Para mim nada disto foi novidade, mas para o meu pai, afastado da vida profissional há cerca de 10 anos, embora com mais de 40 anos de experiência em artes gráficas, fotografia, publicidade, foi um choque tremendo ver o estado a que chegámos, nem tanto os putos, mas a banalidade, a incoerência, a sobranceria dos professores/profissionais do júri deixaram-no verdadeiramente enervado, tive de o aturar o dia todo.
Muitos poderão pensar que a questão genética poderá estar a toldar a razão, principalmente do avô, mas nesta casa a crítica implacável é ponto de honra entre todos nós e mesmo sobre nós, é uma família onde se fala muito e, às vezes, alto, onde não existe reverência aos mais velhos mas entendimento, nem que seja à cabeçada.
25/06/2010
melgas
Existem pessoas que admiro, mas depois não percebo coisas como esta http://daliteratura.blogspot.com/2010/06/isto-vai-la.html
Parece aquelas telenovelas mexicanas mal dobradas.
24/06/2010
o castelo
Nos últimos meses, a falta de dinheiro para comprar e de pessoas para me emprestarem livros obrigam-me a reler autores, Boris Vian, Tennessee Williams, Kafka, Milan Kundera, que fui lendo entre a adolescência e os vinte anos. Limpo o pó, as palavras surgem-me agora muito mais nítidas do que há vinte e tal anos atrás.
Há males que vêm por bem, infelizmente não encontro "O Castelo" do Kafka o livro que mais prazer me deu a ler, até hoje.
22/06/2010
movimento circular
No teu reflexo procuro esse gesto tornado imortal, um movimento circular projectado para lá do tempo, para lá da memória, para lá do horizonte longínquo que tento vislumbrar. Na distância voa o pensamento, pacienta a esfinge, que se solta da alma e parte. Esperar é a virtude da negação animal que outrora fomos.
a um deus risível
Será que esta gente das Igrejas, lideres e seguidores, não percebe que um ateu se está nas tintas para infernos, purgatórios e, ainda mais nas tintas, para estas purgazinhas terrenas.
dor
Penso, logo existo é uma frase de intelectual que subestima as dores de dentes. Sinto, logo existo é uma verdade de alcance muito mais geral e que se aplica a todo o ser vivo. O meu eu não se distingue essencialmente dos vossos pelo pensamento. Muitas pessoas, poucas ideias: pensamos todos pouco mais ou menos a mesma coisa, transmitindo, tomando de empréstimo, roubando as nossas ideias uns dos outros. Mas se alguém me pisa um pé, sou só eu quem sente a dor. O fundamento do eu não é o pensamento mas a dor, o mais elementar de todos os sentimentos. Na dor, nem sequer um gato pode duvidar do seu eu único e não permutável. Quando a dor se torna aguda, o mundo desvanece-se e cada um de nós fica a sós consigo mesmo.
Milan Kundera in "A Imortalidade"
e o Carnaval?
Acho que todos nós devemos repensar o que andamos aqui a fazer. Bom é que nos divirtamos, que vamos à praia, à festa, ao futebol, esta vida são dois dias, quem vier atrás que feche a porta – mas se não nos decidirmos a olhar o mundo gravemente, com olhos severos e avaliadores, o mais certo é termos apenas um dia para viver, o mais certo é deixarmos a porta aberta para um vazio infinito de morte, escuridão e malogro.
José Saramago “Cada vez mais sós”, in Deste Mundo e do Outro, Ed. Caminho, 7.ª ed., p. 216
17/06/2010
o Zé Maria de Setúbal
Alguém me explica porque é que o Paulo Ferreira foi de Setúbal para o Porto, do Porto para Londres (por muita massa), se mantenha por lá tanto tempo e ainda seja constantemente jogador da Selecção que é a Portuguesa.
Este jogador faz-me lembrar o Melhoral que não faz bem nem mal, ou como diz o meu velhote "esta selecção era o Paulo Ferreira na praia, o Deco numa SPA a recuperar de uma lipoaspiração àquele cu, o Danny a treinar para a Volta a Portugal, o Simão a fazer uma reciclagem rápida a ver como jogava no Benfica e o Carlos Queiroz a treinar os sub14 de qualquer coisa."
explosões
Lembrei-me de tudo isto no dia em que Portugal esteve suspenso da explosão do CR7. Para nada.
Eduardo Pitta aqui: http://daliteratura.blogspot.com/2010/06/o-pais-das-vuvuzelas.html
O Ronaldo explodiu, os outros é que resolveram implodir e jogar sozinho nem o Eusébio.
16/06/2010
vuvuzelando
Agora gostava de ver o discurso dominante da força da técnica e da técnica da força, dos múltiplos e enfadonhos comentaristas/especialistas/analistas/professores/profetas e sei lá mais o quê, explicarem como é que a selecção que, de longe, melhor e mais bonito futebol jogou perdeu?
Eles entraram pela direita, pela esquerda, pelo centro, remataram dentro da área, fora da área, com os pés, com a cabeça e, por vezes até com outras partes do corpo, mas perderam. he viva la espana
Os mais espertos irão dizer "é futebol", pois é pá, mas V. Exas. é que parece que falam de uma ciência exacta, eu cá apressava a união ibérica e punha o Ronaldo mais o Coentrão a jogar na selecção espanhola e aí é que era tudo nosso, aliás deles, ou melhor, de nosotros.
Entretanto, a saloice portuguesa continua espalhada por esse mundo fora, espalhando a boa nova de um fado tão triste quanto estes novos tempos em que temos de viver.
Vai mais uma sopradela na vuvuzela.
And the Band Played Waltzing Matilda
When I was a young man I carried my pack
And I lived the free life of a rover
agora sinto-me alegre e inspirado
Agora sinto-me alegre e inspirado em chão clássico;
Mundo de outrora e de hoje mais alto e atraente me fala.
Aqui sigo eu o conselho, folheio as obras dos velhos
Com mão diligente, cada dia com novo prazer.
Mas, noites fora, Amor me mantém noutra ocupação;
Se apenas meio me instruo, dobrada é minha ventura.
E acaso não é instruir-me, quando as formas dos seios
Adoráveis espio e a mão pelas ancas passeio?
Compreendo então bem o mármore; penso e comparo,
Vejo com olhar tacteante, tacteio com mão que vê.
E se a Amada me rouba algumas horas do dia,
Em recompensa me dá as horas todas da noite.
Nem sempre beijos trocamos; falamos sensatos;
Se o sono a assalta, fico eu deitado a pensar muitas coisas.
Vezes sem conto eu tenho também poetado em seus braços
E baixo contado, com mão dedilhante, a medida hexamétrica
No seu dorso. Em sono adorável respira,
E o seu hálito o peito me acende até à raiz.
O Amor atiça a candeia entretanto e pensa nos tempos
Em que aos Triúnviros seus o mesmo serviço prestava.
Johann Wolfgang von Goethe, in "Elegias Romanas"
a espessura da felicidade
Viver com o coração na boca e a razão no peito a doer,
desatino inquieto que sou.
Nisto,
faço coisas e gosto das coisas que faço,
não pela importância,
amanhã cai um calhau na terra e lá se vão as importâncias,
tantas,
mas,
enquanto por cá se vai andando,
não ficarei com a cabeça entre as orelhas a olhar o céu à espera do calhau.
Aqui,
donde sou e onde vivo,
é o que sinto,
cada vez mais sou a espreitar por entre as nuvens à espera do nada,
cada vez mais vivo a espreitar por entre as nuvens à espera de tudo,
e,
apesar do que me prende e como para nada já chega o pouco que sou,
apetece-me partir.
As pessoas costumam dizer que querem ser felizes,
outros dizem mesmo que são felizes,
mas a felicidade não se anuncia ou deseja,
a felicidade cumpre-se.
E se é ridículo dizer que se é feliz,
também nunca vi ninguém dizer que quer ser infeliz.
Mas a questão nem é essa,
este eu que figuro quer lá saber de ser feliz.
Agora tentar seria bom.
09/06/2010
Canto dos Espíritos sobre as Águas
A alma do homem
É como a água:
Do céu vem,
Ao céu sobe,
E de novo tem
Que descer à terra,
Em mudança eterna.
Corre do alto
Rochedo a pino
O veio puro,
Então em belo
Pó de ondas de névoa
Desce à rocha liza,
E acolhido de manso
Vai, tudo velando,
Em baixo murmúrio,
Lá para as profundas.
Erguem-se penhascos
De encontro à queda,
— Vai, 'spúmando em raiva,
Degrau em degrau
Para o abismo.
No leito baixo
Desliza ao longo do vale relvado,
E no lago manso
Pascem seu rosto
Os astros todos.
Vento é da vaga
O belo amante;
Vento mistura do fundo ao cimo
Ondas 'spumantes.
Alma do Homem,
És bem como a água!
Destino do homem,
És bem como o vento!
Johann Wolfgang von Goethe, in "Poemas"
dust in the sun
Preciso do deserto, onde o abismo se suceda em dunas suaves e na planície encontre a sombra e na sombra encontre o vento e com o vento venha o silêncio.
Água fresca que me alimenta.
imortalidade risível
Os prestidigitadores gostam de manipular chapéus. Fazem desaparecer dentro deles objectos, ou tiram de dentro deles pombas que voam para o tecto. Bettina tirou do chapéu de Goethe os feios pássaros do seu servilismo; e dentro do chapéu de Beethoven (por certo que sem querer) fez desaparecer toda a sua música. Reservou a Goethe a sorte de Tycho Brahé e de Carter: uma imortalidade risível. Mas a imortalidade risível espreita-nos a todos; para Ravel, Beethoven seguindo em frente com o chapéu enterrado até às sobrancelhas era muito mais risível do que Goethe, inclinando-se profundamente.
Por conseguinte, ainda que seja possível compor-se a imortalidade, modelá-la de antemão, manipulá-la (lembremo-nos das três rosas de Miterrand!), ela nunca se realizará tal como foi planeada. O chapéu de Beethoven tornou-se imortal. Desse ponto de vista, o plano teve êxito. Mas o sentido que o imortal chapéu viria a assumir, isso ninguém podia prevê-lo.
Milan Kundera, in "A Imortalidade".
08/06/2010
mordendo a própria língua
A filosofia salvou-me a vida. A verdade é que não sou homem a quem a sorte tenha bafejado. Se uns nasceram com o cu voltado para a lua, e outros com o rei na barriga, eu nasci com o cu voltado para a crosta terrestre e pedras nos intestinos. Vivo entre dois pólos, é certo, pelo que me considero metade urso, metade pinguim. Mas a filosofia salvou-me a vida, ajudou-me a olhar o mundo com outras perspectivas, ajudou-me a fintar o azar, ou a má-sorte, se é que me faço entender. Noto isso nas coisas práticas da vida. É um facto que não tenho sorte alguma, mas também não deixa de ser um facto que, não tendo sorte alguma, aprendi a driblar a sorte com a filosofia.
Texto integral aqui http://universosdesfeitos-insonia.blogspot.com/2010/06/erros-meus-ma-fortuna-ilusao-ardente.html
Quando alguns músicos contam histórias mirabolantes sobre como conseguiram atingir o sucesso, ou fama, ou o que quiserem chamar, a minha realidade misturada com o meu sentido prático desconfia. Falando só de portugueses, lembro-me de um que diz que estava a tocar na praia para os amigos, passou um gajo de uma editora e tumba, contrato feito. Lembro-me de outro que vendeu um piano para gravar um disco e catrapumba, milhares de exemplares do mesmo vendidos. Ainda me lembro de outro que acho que é o mesmo, que fez uns dedos do meio ao Cavaco num concerto na Costa de Caparica e a seguir pum pum cada bala mata um, a ponte parou com tiros e tudo, resultado, mais uns milhares de discos vendidos. Outro, este mais perto de mim, conta a história do desgraçadinho, que o pai lhe partiu a primeira guitarra, que as dificuldades eram assim e mais assado, mas que ele pontapeou sempre esse estigma com uma grande dedicação e uma vontade ainda maior (oh que caralho a puta da vontade) e superou tudo e todos, a tal ponto que todos foram fugindo dele e ele fugindo de quem deve dinheiro, apesar de não lhe faltar.
Eu também já contei algumas histórias da carochinha, já toquei na praia, bem como noutros locais públicos, nunca tive um piano para vender mas já troquei cromos valiosos, a vontade, essa grande puta, ainda não me faltou, também devo dinheiro, mas só às finanças que os outros não têm culpa da minha falta de sorte. Com tudo isto e mais algumas, o sucesso não quer nada comigo, ver se vou à TV, espantalho-me pelo chão e parto alguns dentes mais uma fractura exposta da tíbio-társica para ver se tenho sorte.
É verdade, há sempre aquela coisa do talento, mas por aí os caminhos ainda me parecem mais estranhos e os karmas mais bizarros.
O que é que me resta fazer?
os rostos da nossa miséria
01/06/2010
perfumes de Portugal
Hoje, fui ao banco levantar o cheque do concerto, a maravilhosa CGD. Qual o meu espanto quando chego e deparo-me com um balcão totalmente remodelado, cheio de mármores, granitos, vidros de qualidade, parecia que estava a entrar no Taj Mahal, enfim, um luxo. Estando a falar de um balcão num edifício com apenas 12/15 anos na Cova da Piedade em que que a única diferença é que os mármores e granitos antigos eram mais escuros mas, ainda assim, de grande qualidade, dei por mim a pensar na crise, depois nos balcões dos bancos nos EUA, com acabamentos reles com uma série de anos, depois nos ordenados daqueles desgraçados que trabalham algumas 10/12 horas por dia para o que ganham dar para pagar a renda da casa, do carro e pouco mais, e apeteceu-me fugir logo dali e voltar de noite para lá por uma bomba.
A pobre desgraçada que me atendeu não percebia porque é que eu queria levantar o dinheiro todo do cheque, ainda era uma quantia razoável, nem me dei ao trabalho de lhe explicar que não tenho conta bancária nem quero nada com bancos e que aquelas obras recentes só me confirmava esta convicção de me manter a milhas desta economia nojenta.
Depois vou para o centro de Almada para encadernar uma peça de teatro que escrevi para levar ao Benite, que me esperava no Teatro de Almada, e, das muitas lojas que faziam este tipo de trabalho, só uma se mantinha aberta, mas já não tinha este serviço. Numa Almada verdadeiramente bonita, verdadeiramente renovada, cheia de passeios, de árvores, ruas sem carros, cheia de esplanadas com reformados e reformados compulsivos de 30/40 anos a beber um café e uma água da torneira que o dinheiro não chega para os passeios, para as estátuas e, principalmente, para manter as lojas abertas, novamente chega-me uma vontade de largar umas bombas e destruir tudo.
Controlada a vontade, lá chego a uma nova loja com o tal serviço, por sinal mesmo em frente, ou melhor atrás, do Teatro. Felizmente, a conversa com o Benite corre muito bem. Saio satisfeito e prossigo, ainda me falta fazer alguns clientes dos salgados, em cinco cafés e restaurante não tenho uma encomenda que seja. Pudera com tanto reformado compulsivo a água del cano estou à espera de quê. Mas, também, que interessa isso, o que interessa é comer aqueles mármores luxuosos e aqueles passeios largos cheios árvores, bostas de cães e Benjamins para nos cagarem em cima.
Ao menos chegamos a casa perfumados dos pés à cabeça.
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