17/10/2011

Brazilina

Brazilina Correia de Paiva é uma mulher de 95 anos nascida na Tulha Velha, aldeia numa montanha perto de Cabril, Castro d'Aire, Viseu mas longe de tudo,  onde há 30 anos quando lá cheguei pela primeira vez ainda se mijava e cagava para um buraco onde os porcos davam conta do recado, sem luz nem água e onde as mulheres não sabiam o que eram cuecas, ou sabiam mas achavam uma inutilidade, o que, bem vistas as coisas, é uma evidência que nesta urbanidade tosca nos recusamos a aceitar, a não ser por um erotismo tão estafado quanto básico.
Essas viagens que se tornaram regulares na segunda quinzena de Agosto, tinham o objectivo do reconhecimento das raízes familiares e, principalmente, proporcionar que a Brazilina revê-se a família. Pela estrada nacional n.º 1 até ao Porto e por uma espécie de estradas que nem lembro do Porto até à Tulha Velha chegávamos a levar 8 ou mais horas de caminho, isto numa carrinha mini com dois velhos e duas crianças no banco de trás. Estas viagens eram uma alegria, o reconhecimento que o mundo era muito mais que uma cidade onde tudo aparecia feito uma alegria ainda maior. Para a Brazilina foi um gosto dentro do que era possível a uma pessoa como ela ter gosto em alguma coisa. Mulher desinteressada e até apática não sabia ler nem escrever, chamou uma vida inteira Manel ao marido que se chamava José Leal Carriça, mas tinha um dom que dava e sobrava para a casualidade de estar vivo, embalava os bebés da família numa voz tão maravilhosa quanto a simplicidade com que se respira. Lembro-me de sair da escola primária e descer os 500 metros que me levavam aquela casa, encontrar o José Leal Carriça que era Manel a fumar cigarros atrás de cigarros, guardar tralha nas traseiras e a resmungar sozinho, só para a ouvir embalar os meus primos. Passava horas em pé com os bebés ao colo a cantar e eu no sofá deleitado a beber café, sim café da cafeteira e a comer pão com manteiga depois da sopa de feijão com hortaliças do quintal. Naquela casa bebia-se café como se fosse água e sempre foi uma questão democrática e consensual, calhava a todos, crianças, jovens e velhos, se nos fez mal não parece, no caso da Brazilina era mesmo o conduto principal do dia, de manhã, à tarde, à noite e até de madrugada. Mal não lhe fez como não faz ainda hoje, com 95 anos, por vezes, ainda é o café que a desperta de uma Alzheimer cada vez mais profunda, tão profunda que nem a tem lembrado que viver assim não vale a pena.
Há vários anos que já não reconhece ninguém, tirando os beijinhos que ainda sabe dar, das últimas coisas que a doença lhe levou foi a vontade de cantar e sem vontade de cantar de que vale viver, principalmente quando a voz se revelava tão importante como o ar.

2 comentários:

Anónimo disse...

Muito bom.

Manuel C.

jp disse...

obrigado Manuel C.