27/11/2008

ao Nuno

de profundis I Navegando pelo mar, ausente, perdido na razão contraditória de uma ficção real, avisto uma paisagem que parece um sonho, que me pertence. Talvez? Mas é imensa e real esta sensação, de um lugar amplo onde o vento sopra, acolhendo o corpo como um braço macio, que penetra fundo, envolvendo-o profundamente na confusão. De repente, o mar cresce, atormenta-se, baloiçando ainda mais a ténue convicção desta imagem fantástica. Raros são os momentos de tão pura harmonia, em que os sentidos não são sentidos, em que ser não é ser. Ausência, total ausência. Mas será assim? Será possível? No fundo é só um sonho, o imaginário da ilusão que inunda o corpo de sensações. Mas depois há sempre um sinal qualquer que estremece esta opinião... Um pouco depois, vejo-me enrolado nas ondas, mas já não estão revoltas, simplesmente embalam-me, ternamente. Eu confundo-me com o meu sonho, se é que de um sonho se trata. Súbito, sem qualquer motivo, afundo-me, com tal rapidez que perco os sentidos. Mas nos sonhos não se perdem os sentidos. Acorda-se. Estranho! II Que luz é esta que tudo ofusca e não deixa ver nada, estarei dentro da minha própria ilusão. Que ausência é esta, serei uma ilusão iluminada por uma clareza cega. Mas lentamente começo a ver. Que enorme alucinação! Caberá tamanha alucinação dentro de um sonho? Vejo um mundo de cristal envolto numa grande bolha de água. E eu perdido, sem saber que caminho tomar, mas noto não existirem caminhos. Vagueio, vagueio sem sentido aparente... Sem dar por isso, encontro-me ao lado de pessoas e parecem-me familiares, mas não consigo distinguir feições. Parecem demasiado envolvidas em algo. Devagar começo a ver um pouco mais, nesta claridade vislumbro alguma nitidez. Parece que escrevem. Canetas iguais à minha? Porquê? Estranho! Apesar de confuso, surge-me, nitidamente, a sensação de que tudo é perfeito. Desenrola-se tudo dentro de uma cadência onde apenas a minha confusão diverge. Que abismo é este? Estarei dentro de mim? Serei um estranho dentro de mim? Entretanto, enquanto vagueio neste entendimento, um mundo inigualável corre pelos meus olhos. Como uma música de harmonias infinitas, como um comboio vagaroso numa linha sem fim... III Desfilando calmamente, como o comboio, vejo pessoas, muitas pessoas, com estranhas roupas, parecem-me roupas antigas, cada vez mais antigas. Todas me parecem familiares, as pessoas e as roupas também. Estranho! Por fim, apercebo-me que todas as pessoas são imagens diferentes de mim próprio, as caras, as roupas, os lugares. O tempo é diferente, mas sei que sou eu. Apesar do total desentendimento dos sentidos, reconheço, infinitamente, o meu espírito dentro deste mundo. Não sei se é sonho, ilusão ou o que quer que seja, mas o espírito vagueia, ausente, neste mundo que não sei qual é.

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