22/01/2013

cena 2



NARRADOR
Ei-la em todo o seu notável esplendor, a puta! Ilusão abstracta e emaranhada como um sonho que não tens, emoção descontínua que faz mas sobretudo desfaz, poço escuro por onde deslizas e estatelas sem contemplações, predadora voraz de um fado já esboçado e desafinado. Olhem bem, vejam como se ri, a déspota, como se baba ávida pelo sal do sangue quente, como se alegra num festim de desengano, desilusão e perda.
Ei-la, a puta, que indomável acelera o tempo e domestica a ambição.

ROSA
No outro dia li algures que uma pessoa que viva o suficiente acaba por ver passar os cadáveres dos seus inimigos, tenho pensado muito nisto. Não é irónico?

JACK
Sim, mas a verdade é que dos amigos também. Não sei o que será mais irónico nem sei mesmo onde está ironia, de qualquer forma se existe alguma certeza nesta vida, a perda é o certo centro dessa certeza e não existe solidão maior que perder alguém, amigo ou mesmo inimigo.

ROSA
Ok Jack, mas tu percebeste o que eu queria dizer...


JACK
Queres uma deixa que te permita continuar ou que me permita a mim continuar. Não sei se tu percebeste o que eu quis dizer? Temos pouco mais que a loucura da certeza da inconsequência, um bocado, um pedaço, uma terra, um país, um continente, um mundo, o universo. Um tanto que é só isto, nós e a nossa eternidade ilusória, sem palavra, sem expressão, sem conjecturas, sem falácias, sem engano, sem política. Apenas nós até ao fim.

ROSA
Lá estás tu, não se pode falar contigo.
Que queres? Sorrir aos Deuses e acomodares-te no Olimpo.

JACK
Não Rosa! Sorrir aos Deuses e dizer-lhes que dificilmente me domam o espírito mas que quero que continuem a tentar até me dobrarem e pararem com as revoluções fictícias mais os golpes neste estado que sou, segurarem-me nesta atrofia que figuro e ampararem-me a queda desta tristeza que me assalta quando o vento me larga sem norte. E vens tu falar-me de coisas sem sentido.

ROSA
Que dizes? Estás doido Jack.

JACK
Sim, doido varrido. Preciso que a melodia que rodopia na minha cabeça se torne uma canção e se faça em arco-íris com um pote de ouro no fim ou em balões vermelho sangue que o vento leva em festa pelo céu azul. Já viste como tudo é irónico e vens falar-me de inimigos.

ROSA
Mas alguma vez pensaste que isto é um paraíso, serves-te das palavras, mergulhas assim nas palavras como se nelas encontrasses uma réstia de razão para este mundo.

JACK
Razão, qual razão? A tua, a minha, a do mundo inteiro, a de deus, a do universo? Qual razão? Se me deres uma dou-te um beijo.

ROSA
Um beijo? Essa é boa.

JACK
Sim um beijo por uma razão.

ROSA
Sobreviver e não esperar por nenhum paraíso, não esperar por muito mais do que o que é palpável, o mais provável é que o que temos seja pouco mais que isto.
Olha que isto já não é pouco e às vezes até nem é mau.
Dá-me lá esse beijo.

JACK
Não, ainda não Rosa. Será que não vês a farsa que somos, uma farsa feita de erros, de falhas, de mentiras, de arrependimento, de solidão, porque numa coisa tens razão, isto aqui não é o paraíso, mas é o lugar que o teu corpo ocupa, é o lugar que a tua cabeça pensa, é o lugar que o teu coração sente e por mais estranho que pareça por vezes isso não é suficiente.
Às vezes só me apetece repousar deste caminho solitário, virar o corpo ao contrário até que o sangue expluda na minha cabeça e engane este tempo que fazemos.

ROSA
Só estava a fazer conversa e agora só te pedi um beijo, um simples beijo, mas hoje estás lançado e não se consegue mesmo falar contigo, não te pedi uma aula de filosofia ou de literatura de cabeceira.
Com mais ironia ou menos ironia dás-me um beijo ou não?

JACK
Aula? Qual aula?
Queres ironia Rosa. Fode-me até eu cair inerte e podes dizer que me amaste até à morte.

ROSA
Isso sim, seria irónico, mas um pouco trágico não?

JACK
Não sei.

ROSA
Não sabes? Como é que não sabes?

JACK
Sim, não sei. Para mim não era tragédia nenhuma, a morte só é trágica para os que cá ficam e mesmo assim tem prazo de validade.

ROSA
Cínico. És mesmo cínico. Isso era o que tu querias, mas para tragédia já me chega a vida. Foda-se, queres mesmo continuar a discutir?

JACK
Não, mas quero que tu continues a discutir comigo.

ROSA
Cala-te e beija-me!

JACK
(beija-lhe os dedos dos pés subindo devagar demorando-se em toda a carne que encontra, entre as coxas e o sexo para e diz)
Vês como eu tinha razão.


ROSA 
triste, vira-se de costas para Jack)

JACK
Isso quer dizer que não me vais foder até morrer.

ROSA (voltando-se para Jack a rir)
Até morrer não Jack, mas posso ver se chegas ao nascer do dia.

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