Camarada Van Zeller, os aranhiços da opinião andam muito encrespados com o nosso amigo hamburguês. Não se entende porquê, afinal o bom samaritano limitou-se a reiterar uma estafada banalidade. Está cartesianamente provada a capacidade de resistência do material luso. Aguentámos cinquenta anos de miserável ditadura, mais trinta anos de consulado cavaquista, aguentamos todo o tipo de vigaristas, ladrões, assassinos e nem pipilamos, aguentamos o BPN com passeios matinais, mais facilmente atiramos ovos podres à fronha de um psicólogo metido em assuntos de bola do que arremessamos uma reprodução do Cristo Rei contra as fuças de um qualquer Berlusconi português, nós aguentamos, aguentamos tudo, até nos aguentamos a nós próprios, tão alegres que andamos e distraídos a imaginar o disfarce deste ano e a discoteca ou o bar onde vamos alegremente expiar as nossas virtudes, porque pecados já não temos nenhuns, somos uma alegria de viver, convencidos que vamos indo de tanto aguentar as portas fechadas da Suíça, a torneira avariada da Europa, a panela de pressão do Banco Alimentar, nós aguentamos tudo, é sabido, foi estudado, está provado, aguentamos o Relvas no Governo e as promoções dos bons funcionários da maior fraude fiscal de sempre no país, aguentamos os sacos azuis das forças armadas, uma vara de porcos à solta na auto-estrada e os erros do Ministério da Educação, aguentamos o cheiro da latrina e ainda que denunciemos a sua insuportabilidade nós apertamos o nariz com uma mão e tapamos os olhos com a outra, dançamos a coreografia do Gangnam Style, pousamos muito alegres e inclinados para a fotografia, acabamos a noite a arrotar ao ovo dos hambúrgueres e acordamos de manhã a peidar ulrichs, nós aguentamos tudo meu Deus, até a tua insistente ausência, benzemo-nos envergonhadamente, matamos a sede com água benta, cuspimos para o chão, coçamos as virilhas, acendemos um cigarro, vamos andando enquanto houver estrada para andar, com a cabeça entre as orelhas porque para mais ela não serve senão para os abanos encontrarem pouso e o chapéu aterro, nós aguentamos, aguentamos tudo, aguentamos os intermináveis incentivos à emigração, os lucros do BES e do BPI, porque não só somos o melhor povo do mundo como somos muito civilizados, civilizadíssimos, aguardamos pelo nosso amor na cama e ficamos alegres e curvados e rendidos perante o seu regresso, nós aguentamos a solidão, a distância, a tristeza e dela fazemos melancolia e da melancolia sacamos elegias e com elas produzimos textos muito resilientes que depois publicamos no weblog, no facebook, no caralho que nos foda a todos enquanto aguardamos que passe mais uma noite e mais um dia comece com todos os funcionários do BPI e do BES devidamente fardados, eles com fatos cinzentos, elas já sem os decotes da noite passada, todos muito hipócritas e lavados e perfumados, aguentamos e até damos uma esmolinha ao indigente, coitado, porque ninguém nos livra de virmos a ser como ele, podem acontecer coisas, a vida é uma incerteza, certo seja que aconteça o que acontecer cá estamos nós para aguentar, porque nós aguentamos até o aquecimento global, a seca, as tempestades, as intempéries, as ventanias e os alertas vermelhos, aguentamos 72 anos de merda contra 27 anos de excessos, e perguntamo-nos, afinal, por que aguentamos nós? e a resposta é sempre a mesma, tão breve e estúpida e desonesta que até chateia, respondemos que é pelos outros, pelos filhos, pela família, pelos pais, pelos irmãos, pelos primos, porque também nós somos muito amigos dos nossos amigos, só que não fazemos disso alarde, pelo menos com saldos e deves e haveres, porque o nosso livro de contas não tem linhas, está vazio com os versos dos poemas, também eles vazios, porque nós aguentamos, mas a poesia não, a poesia morreu e nós estamos vivos a aguentar com a garantia de que o TGV arrancará em breve e em breve poderemos metermo-nos todos lá fora muito mais rapidamente, tão rapidamente que nem daremos por isso, e então estaremos em Madrid como quem está em Lisboa e em Lisboa como quem foi a Paris, com uma simples diferença, aguentamos melhor do que todos esses canastrões da Europa civilizada, da qual não fazemos parte só por mero azar, porque o FMI bem nos quer maquilhar de modo a que nos misturemos uns com os outros sem darmos pelas diferenças, há quem se esforce, quem se esforce tanto, foda-se, para que sejamos todos prósperos e felizes e abundantes e nós aqui, foda-se, nós aqui a debitar angústias quando deveríamos era ter vergonha, porque a esta hora, a esta hora camarada Van Zeller, meio mundo já se levantou do sono não dormido para mais um dia de jorna. Ninguém percebe, portanto, a ofensa. O hamburguês constatou uma banalidade. Talvez custe sermos assim confrontados com a AXIOMÁTICA verdade da nossa própria miséria, tão superficialmente que vamos aguentando tudo isto e muito mais.
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